1 – Corte-se da metade para cima a imagem dos cinco presentes na foto do encontro, em novembro do ano passado, entre o recém-eleito presidente Jair Bolsonaro e o assessor de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Bolton, e ainda assim será possível deduzir qual deles é o americano. Dos calcanhares de Bolsonaro, dos generais Augusto Heleno e Fernando Azevedo e Silva, e do hoje chanceler Ernesto Araújo, salta uma maçaroca descuidada, sem apuro. Bolton era o único com a barra da calça ajustada sob medida. Questão de rito e rigor, não de elegância.

2 – Em Atenas, na Grécia Antiga, os debates se fiavam também pelo bem-vestir dos oradores. Na ágora, palco das disputas políticas, se ornavam palavras e vestes. Sólon, pai da democracia ateniense, por exemplo, era “modesto demais até para falar com seus braços para fora da túnica”. Num discurso virulento, Ésquines censurou Timarco porque este, segundo suas palavras, “dia desses numa assembleia do povo arrancou sua túnica e saltou feito um ginasta, seminu”. O desleixo, prosseguiu, “cobriu os olhos de vergonha pela cidade, por deixarmos homens como esse posarem de nossos conselheiros”.
3 – A Barra da Tijuca, onde se deu o encontro com Bolton, não é a Grécia Antiga. Brasília tampouco, mas, entre um e outro lugares, vai à distância um rito que, a julgar pela foto divulgada na última quinta-feira (14), com o presidente em traje-molambo cercado por alguns de seus ministros, no Palácio do Planalto, Bolsonaro faz pouca ou nenhuma questão de preservar ou se adequar. Noutra imagem, de uma reunião anterior à foto, a camiseta falsificada do Palmeiras.

4 – Num ensaio de 1950 chamado “O espírito das roupas”, a filósofa e crítica literária Gilda de Melo e Sousa demonstra, com um apanhado literário rigoroso, como a vestimenta também conta a história. Do legionário romano ao profissional liberal do século XX, categorias, gestos, posições, gênero e atitudes podem ser esmiuçadas pelas vestes de um indivíduo, assim como suas intenções. Adequar-se aos ritos não necessariamente distancia o governante da plebe, mas a inspira, sob pena de que, à medida que se degrade, a autoridade se dilua, tal como no arroubo de Timarco de Atenas.
Fonte: Revista Época