Computadores, laptops, celulares, tablets, inteligência artificial, termos que estão cada vez mais no cotidiano. Como abordar a tecnologia nas salas de aula das escolas do país e como fazer dela uma aliada na educação? Isso é possível ou mesmo recomendado? O Brasil recentemente sancionou a Política Nacional de Educação Digital (Pned), assumindo a intenção de que as crianças e jovens tenham acesso a uma formação que os prepare para um mundo cada vez mais tecnológico.
Na ausência de um caminho único, as redes de ensino têm em curso diferentes iniciativas para incorporar ou mesmo restringir a tecnologia nas escolas. A Agência Brasil conversou com especialistas, professores e estudantes sobre os vários caminhos para lidar com o universo digital e sobre os desafios encontrados até aqui.
As discussões do uso de tecnologias na educação começaram ainda na década de 1980, segundo o professor titular da área de tecnologias da educação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), Gilberto Santos. Nessa época, a internet estava apenas começando. “O surgimento de novas tecnologias educativas não foi acompanhado do surgimento de novas abordagens pedagógicas tão inovadoras como as tecnologias”, diz Santos, que é líder do Grupo de Pesquisas Interdisciplinares sobre Tecnologias e Educação (Abaco).
“Passados 30 anos, continuamos tateando, porque as tecnologias evoluíram, evoluem e nós profissionais da educação continuamos tateando, sem encontrar um norte, do ponto de vista pedagógico, que oriente novas práticas”, acrescenta. Ele explica que novas tecnologias trazem uma nova cultura que demanda uma mudança na forma de ensinar, para que elas sejam melhor aproveitadas. “Isso não é um problema só brasileiro, é mundial. Não encontramos fórmulas pedagógicas inovadoras para darem conta da tecnologia e darem conta da cultura que elas trazem”.
Somado aos desafios pedagógicos, há os desafios de infraestrutura e de acesso. No final de 2022, de acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), 3,4 mil escolas no País, 2,5% do total de escolas, não tinham acesso sequer a rede de energia elétrica, 9,5 mil, ou 6,8%, não dispunham de acesso à internet e 46,1 mil, o equivalente a 33,2%, não possuíam laboratórios de informática. Os números foram disponibilizados no Painel Conectividade nas Escolas, disponível no Portal da Agência.
O caminho, para os estudantes, que estão assistindo as aulas, é incorporar a tecnologia à educação, mas garantir que isso venha junto com o acesso universal. “Hoje é impossível fazer qualquer coisa sem acesso à internet”, diz a presidenta da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), Jade Beatriz, e acrescenta: “A gente vive falando que a educação é a mesma de 50 anos atrás e que precisa se transformar para os estudantes terem vontade de ir para a escola e aprender, que não seja só ir para a escola, sentar na cadeira, assistir o professor falando e ir embora. A gente acredita que a tecnologia é indispensável para que isso aconteça, mas isso deve ser feito com responsabilidade”.
No início deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 14.533/2023, que institui a Política Nacional de Educação Digital (Pned). A intenção é garantir o acesso, sobretudo das populações mais vulneráveis, a recursos, ferramentas e práticas digitais. A Pned vai articular os programas, projetos e ações de municípios, estados, Distrito Federal e União, de diferentes áreas e setores governamentais, para potencializar e melhorar os resultados dessas políticas públicas. A Pned tem quatro eixos de atuação, cada um com ações específicas: a inclusão digital, a educação digital escolar, a capacitação e especialização digital e a pesquisa e desenvolvimento em tecnologias da informação e comunicação.
Entre as ações previstas estão o treinamento de competências digitais, midiáticas e informacionais e a conscientização a respeito dos direitos sobre o uso e o tratamento de dados pessoais. Está prevista também a promoção da conectividade segura e da proteção dos dados da população mais vulnerável, em especial de crianças e adolescentes.
Segundo os entrevistados, nem no Brasil, nem no mundo, há um caminho único. Assim, as redes de ensino têm tomado diferentes medidas para incorporar ou mesmo restringir a tecnologia nas escolas.
São Paulo e os livros digitais
Em São Paulo, no final de julho, o governador Tarcísio de Freitas, anunciou que não iria aderir ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC), e que os alunos da rede estadual, a partir do 6º ano do ensino fundamental, teriam apenas livros digitais a partir de 2024. A medida gerou críticas e discussões. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) chegou a determinar que o governo estadual incorpore o PNLD.
O estudante do 2º ano do ensino médio da Escola Estadual Odila Leite dos Santos em Itaquaquecetuba (SP) e diretor da União Paulista dos Estudantes Secundaristas, Wendell de Paiva, diz que é a favor do uso de tecnologia, mas que isso deve ser feito com o devido cuidado e observando as várias desigualdades nas redes de ensino. “Tem escolas que têm matéria de tecnologia e tem computadores que não funcionam, que não tem acesso à computadores de qualidade, não têm wi-fi de qualidade ou às vezes não tem nem wi-fi”.
Ele conta que na própria escola, há dificuldades para acessar a internet. “A minha escola tem dificuldade na questão do wi-fi. Ela fica na periferia e temos dificuldades com o acesso. O dispositivo não conecta no celular de todos os alunos e sofremos com computadores que não funcionam. Quando precisamos fazer uma atividade, responde a prova no computador, não tem para todo mundo, é bem difícil”.
Em meados de agosto, o governo voltou atrás e informou a adesão ao PNLD, que é o programa nacional voltado para compra e distribuição de livros didáticos para escolas pública, mas sem abrir mão da produção própria. Os alunos terão à disposição tanto o material baseado no Currículo Paulista – que terão versão impressa – quanto os livros didáticos fornecidos pelo MEC. “A nossa principal meta é oferecer aos alunos um ambiente educacional inovador, com ferramentas e insumos pedagógicos que garantam um processo de aprendizagem mais completo e formem cidadãos preparados para o mundo e com condições de buscarem posições competitivas no mercado de trabalho”, diz em nota a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.
Paraná e as plataformas educacionais
No Paraná, o uso das plataformas na educação começou de forma mais intensa na pandemia, no governo de Ratinho Júnior, quando o então secretário Renato Feder, estava à frente da pasta da Educação. Feder agora é o atual secretário de Educação de São Paulo. A presidente do Sindicato dos(as) professores(as) e funcionários(as) de escola do Paraná (APP-Sindicato), Walkiria Mazeto diz que as plataformas digitais começaram a ser usadas tanto nos registros básicos como lista de chamada e lançamento de notas dos alunos, quanto para acessar conteúdos contratados e aplicativos.
O uso foi, segundo Mazeto, intensificado mesmo com o retorno das aulas presenciais. As escolas passaram a ter metas para cumprir nessas plataformas, que deixaram de ser um apoio e passaram a ser em si uma porcentagem das aulas e dos conteúdos dados nas escolas. “Todos os App têm meta para a escola. Tem quizz [testes], plataforma de exercícios, curso de inglês online, tem língua portuguesa, leitura, redação. Estamos com sete plataformas de interação obrigatória e todas elas têm meta e alguém que vigia a meta”, diz Mazeto.
A APP-Sindicato realizou de forma pioneira no estado a pesquisa Plataformização da Educação com o Instituto Pesquisas de Opinião (IPO) para medir os impactos do uso das plataformas para os educadores do estado. Os dados divulgados mostram que quase a maioria, 91,3%, declaram estar sobrecarregados com a avalanche de novas plataformas, aplicativos e meios tecnológicos somados à cobrança pelo cumprimento de metas. Três a cada quatro, 74,3%, reconhecem impactos negativos do modelo na sua saúde física e/ou mental, enquanto uma parcela maior, 78,3% afirma ter colegas que adoeceram em decorrência das dificuldades impostas pelas novas tecnologias.
Nas disciplinas em que as plataformas foram incluídas, Mazeto diz que os professores ralatam que não têm autonomia para dar aulas, mesmo tendo formação adequada para tal. “Isso gera frustração, uma sensação de perda de autonomia pedagógica”, diz.
A pesquisa mostra ainda que 90% dos respondentes concordam que as plataformas deveriam ser de uso opcional nas escolas, servindo como instrumentos de apoio pedagógico e não de uso obrigatório. “Uma coisa é ter um app ou disponibilizar à escola professores e estudantes a possibilidade de complementar, de usar na aula, de dispor disso como recurso didático e outra é forma como está posta. Uma obrigatoriedade. Organiza-se a escola hoje a partir dedas plataformas”, diz Mazeto.
Para os estudantes, o uso das plataformas não melhorou o ensino, de acordo com a diretora de relações institucionais da União paranaense dos estudantes secundaristas (Upes), Ana Ponce, que é estudante do 2º ano do Colégio estadual Lysimaco Ferreira da Costa, em Curitiba.
“A gente vê a importância de usar a tecnologia na sala de aula porque o mundo roda em volta da tecnologia e ter um celular ou não define muita coisa na sua vida, infelizmente. Mas, no Paraná tem escola que não tem estrutura nenhuma para suportar o uso da tecnologia, tem aluno que não tem suporte nenhum fora da escola para usar tablet, laptop, ou não tem internet”, diz a estudante.
Ela conta também que nas plataformas, os estudantes resolvem testes, os chamados quizzes, que são de múltipla escolha e permitem várias tentativas. “Você pode escolher quantas vezes quiser, não tem como errar, o professor não vê seu desempenho real, você vai sempre acertar”, diz. Como estudante do ensino médio, ela se preocupa com a formação que está tendo, que não considera suficiente para que ela ingresse em uma universidade pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), por exemplo.
Os professores compartilham dessa preocupação. A pesquisa conduzida pelo APP-Sindicato e Instituto IPO mostra que apenas 16,9% dos professores afirmam que as plataformas tecnológicas utilizadas em sala de aula melhoraram a aprendizagem dos estudantes. Para 40,3%, a aprendizagem piorou e 42,7% dizem que os resultados não foram positivos nem negativos.
A Agência Brasil entrou em contato com a Secretaria de Educação do Paraná, mas não recebeu um posicionamento até a publicação da matéria.
O Rio e a restrição do celular
Na contramão dos dois estados, o município do Rio de Janeiro busca formas de evitar o uso excessivo de celular na sala de aula. A prefeitura da capital publicou um decreto que regulamenta o uso dos aparelhos nas escolas públicas. Agora, o celular deverá ficar guardado e só poderá ser usado para atividades pedagógicas, com a autorização dos professores. O decreto soma-se a lei estadual que também proíbe o uso de aparelhos eletrônicos quando não autorizados por professores.
Os professores podem autorizar os estudantes a usarem o celular para pesquisas, leituras, ou mesmo acesso ao material Rioeduca, oferecido pela prefeitura, ou outro conteúdo ou serviço. Quando permitido, o aluno deverá utilizar os aparelhos de forma silenciosa e de acordo com as orientações do professor. Também está autorizado o uso dos celulares para os alunos com deficiência ou com problemas de saúde que necessitam destes dispositivos para monitoramento ou algum tipo de auxílio.
A medida, de acordo com a Prefeitura do Rio, é baseada no Relatório de Monitoramento Global da Educação 2023: a Tecnologia na Educação: uma Ferramenta a Serviço de Quem? da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) que mostrou que o tempo prolongado de exposição à tela pode afetar de forma negativa o autocontrole e a estabilidade emocional, aumentando a ansiedade e a depressão. Além disso, o relatório diz que os governos “precisam garantir as condições certas para permitir o acesso igualitário à educação para todos, regulamentar o uso da tecnologia de modo a proteger os estudantes de suas influências negativas e preparar os professores”.
“Temos que ter novas regras para a nova realidade. Hoje, há um uso excessivo dos smartphones e vivemos uma epidemia de distrações. É necessário educar e apoiar as crianças para esse novo tempo. Nesse sentido, regras são fundamentais. Ficar demais no celular é comprovadamente prejudicial, e essa nossa medida busca educar os hábitos, com um uso mais consciente e responsável da tecnologia”, afirmou na ocasião, o secretário de Educação do Rio, Renan Ferreirinha.
Tecnologia e convívio social
Desde que foi divulgado, em julho, o relatório da Unesco tem sido citado nas discussões sobre o uso de tecnologia nas escolas. “O relatório traz tanto o lado positivo da tecnologia em sala de aula, como traz algumas preocupações com relação a essa questão da tecnologia. Quando traz essa questão do lado mais negativo da tecnologia, ele aponta que, quando é utilizada em excesso e para fins não pedagógicos, pode realmente atrapalhar os estudantes no aprendizado. Mas, isso se tiver um uso excessivo e se tiver uso em sala de aula que não seja pedagógico. Por isso é importante a tecnologia ser apropriada pelo setor educacional no sentido pedagógico e se beneficiar”, diz a coordenadora da área de Educação da Unesco no Brasil, Rebeca Otero.
Otero aponta que alguns dos benefícios trazidos pelas tecnologias são trazer mais informações, promover grupos de discussão, entre outros. Ela ressalta, no entanto, que esses equipamentos não substituem os professores ou o convívio social. “A tecnologia não substitui nem o professor, nem o ambiente social da escola.Para Não substitui outras tecnologias existentes na educação como a leitura de um livro. Claro que se pode ler um livro digital, mas é importante ter o hábito da leitura entre os estudantes, da leitura mais consistente e mais profunda que não seja uma leitura rápida de manchete de redes sociais ou algo assim. Importante manter esses aspectos da educação que sabemos que são muito bons e funcionam e complementá-los com tecnologia de forma apropriada, trazendo o máximo possível de uso pedagógico dessa tecnologia”, diz.
O relatório também mostra que a desigualdade no acesso à tecnologia não é exclusiva no Brasil. Em todo o mundo, apenas 40% das escolas primárias, 50% das escolas de primeiro nível da educação secundária e 65% das escolas de segundo nível da educação secundária, ou seja, de ensino médio, estão conectadas à internet e 85% dos países têm leis ou políticas para melhorar a conectividade nas escolas ou entre os estudantes.
Segundo Otero não há uma resposta pronta sobre como é o uso ideal de tecnologia nas salas de aula, cada país está buscando soluções que mais se alinham com as próprias realidades. “Alguns estão indo para o lado de limitar um pouco a tecnologia e outros de sem mais abertos. Acho que cada país tem que olhar suas particularidades. O Brasil é um país que tem uma formação muito desigual”, diz. “Então, temos que trazer a tecnologia mais como aliada”.
Edição: Valéria Aguiar